Em torno da memória
Por Alexandre Honrado
Só porque me apetece, dedicarei os próximos tempos a escrever sobre memória já que a vejo volátil como o álcool que esfrego nas mãos, e estranha como os tempos em qua vivemos. Começo por aqui.
Ao olharmos para a nossa vida, ao entendê-la na vastidão híbrida da cultura onde somos parte integrante, o espaço ocupado pela memória exige atenção plural. Se por um lado ela parece ser um inequívoco atributo biológico, mais ou menos desenvolvido em cada um de nós, ao mesmo tempo é uma limitação a que nos impomos, pois confunde-se involuntariamente com o que nos chega e nos compõe, importação além biológica, pois relaciona-se com as formas de pensar, de sentir e de agir de cada um em função do que vive e dos meios que frequenta, do que compõe a sua mundividência e do que nela o limita. Assim, será a memória o conjunto dos sedimentos mais importantes do que vivemos e que por razões várias evocamos espaçadamente, acreditando traduzirem o vivido em nós, aceitando-se assim que a consciência autobiográfica que temos não passa de pontos elevados do que recordamos, resquício de mundividência e de episódios quotidianos relevantes.
Seria patológico recordar com exatidão todos os momentos, todos os segundos da nossa vida. Seria insuportável.
Chamamos memória a uma capacidade de síntese, portanto, mesmo que ela seja pródiga em pormenores. É difícil aceitar que a memória que retemos do que fomos coincida com a vida que vivemos; o que a nossa história de vida é produto de um inconsciente que se realizou; ou mesmo que cada um de nós possa auto analisar-se – em autoscopia – como problema científico pois cada um de nós é também um problema aleatório, uma prova do improvável, um exercício de improviso. A memória será assim mais um dos exercícios de ajustamento humanos. Citando (de memória) Gaston Bachelard quando fala do Complexo de Jonas: “tudo o que é ajustado é ajustador”
A memória estuda-se hoje de uma forma intensa, não só porque os últimos decénios não deram prioridade ao seu treinamento – nomeadamente nos formatos de ensino e de aprendizagem – como ela é o ponto fulcral de uma das doenças mais carismáticas e terríveis da nossa era: a neuro-degenerativa Doença de Alzheimer, afinal um tipo de demência que, com a memória, afeta também a atenção, a concentração, a linguagem, o pensamento).
Em 1917, precisamente, Carl Gustav Jung publicou os seus estudos sobre o inconsciente coletivo no livro A Psicologia do Inconsciente (depois, já em 1920, apresentou os conceitos de introversão e extroversão na obra Tipos Psicológicos). A partir daí, Jung construiu as bases da psicologia analítica, desenvolvendo a teoria dos arquétipos e incorporando conhecimentos das religiões orientais, da alquimia e da mitologia que de certa forma estão hoje na revisitação cultural que os cientistas tomam como prioridade.
Mnemósine, a deusa grega da memória, era considerada uma das mais poderosas deusas de seu tempo. E não sabia nada disto. Também já ninguém se lembra dela, o que prova o triunfo da amnésia sobre os seres humanos mas sobretudo sobre as deusas que apostavam na recordação e desejavam vir a ser recordadas, por todo o sempre.
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